quinta-feira, 26 de dezembro de 2013
O SERVO DE DEUS
Romance Histórico passado em princípios do século XIX
Avelina Maria Noronha de Almeida
O romance histórico que vai ser apresentado tem por finalidade principal colocar fatos e dados históricos de uma forma mais leve, qual seja a ficção, menos cansativa de se ler. Assim, ambientação de época e de local, características de caminhos, informações sobre tribo de indígenas, costumes, alimentação e alguns fatos ocorridos são fundamentados no que dizem livros de viajantes estrangeiros que, em princípios do século XIX percorreram os caminhos das Minas Gerais, ou em outras fontes que se encontram no Arquivo e Centro de Pesquisa “Jair Noronha”. O restante é ficção...
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO I
“LEMBRA-TE DO TEU CRIADOR ANTES QUE SE QUEBRE O CORDÃO DE
PRATA, E SE RETIRE A FITA DE OURO, E SE QUEBRE O CÂNTARO SOBRE A FONTE, E SE DESFAÇA A RODA SOBRE A CISTERNA, E O PÓ VOLTE À TERRA DONDE SAIU, E O ESPÍRITO VOLTE PARA DEUS QUE O DEU.”
Eclesiastes 12,6-7
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– Vassuncê inda há de pagá essa mardade!..
Havia um desespero lancinante na voz da velha escrava. Quando terminou de falar, estremeceu o corpo e caiu pesadamente no chão.
Acabava-se uma vida de trabalho, sofrimento e humilhação.
O Coronel murmurou, indiferente, olhando o corpo caído no chão:
– Menos uma imprestável...
À noite, todos os tambores da senzala marcaram seu compasso dorido de triste resignação.
A cena acontecera no ano de 1823.
Fora um dia atormentado. De sofrimento na fazenda.
Um homem poderoso e prepotente tinha sido ferido em seu orgulho. A mulher, submissa, como erva rasteira caLcada pelos pés inclementes do marido, silenciosamente se entregava às lágrimas. Uma jovenzinha de quatorze anos jazia no leito, dilacerada pela dor, porque seu filho recém-nascido fora arrancado de seus braços.
A senzala pranteava a morte da escrava Luzia.
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CAPÍTULO II
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Passaram-se quinze anos...
Um galo cantou cortando o silêncio. Outro respondeu ao longe. A madrugada estava chegando.
No quarto, o escuro era palpável, como se um manto mágico ocultasse as formas. O silêncio apenas quebrado pelo barulho das palhas do colchão quando o velho se revirava no catre, procurando o sono que não vinha.Uma frase lhe veio à memória:
– Vassuncê inda há de pagá essa mardade!
- Velha maldita! Praguejadora dos infernos!
O velho sacudia a cabeça desesperadamente, tentando afugentar as lembranças que agarravam sua noite indormida.
Sentou-se com dificuldade na cama e continuou a pensar dolorosamente.
Quando a madrugara chegou ele ainda se encontrava mergulhado em aflitivas recordações.
Depois daquele dia malfadado, tudo dera para trás. Não havia pensado antes, mas, de repente, teve a visão do declínio caranguejando ano após ano, sugando a força dos seus poderes, de seus bens e de sua vida.
Resmungou agoniado:
– Velha maldita...
CAPÍTULO III
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A manhã chegou espalhando o sol, primeiro no cume dos montes... depois foi deslizando pelo vale e, enfim, reinou soberano.
Coronel Bento se arrastou até a janela. Desejou ver, como em outros tempos, o milharal verde, as folhas balançando ao vento, como um mar de verdura. Imaginou o bando numeroso de escravos saindo para o trabalho na roça e, lá no pasto, o rebanho a perder de vista.
Mas o que tinha à sua frente era a realidade, a dura realidade. Os pés de milho mirrados, morrendo devido à seca. Não havia roça praticamente. Mais era o pasto ressequido. Um pasto sem reses. Somente havia cinco escravos, já não tão novos, remancheando pachorrentamente no terreiro...
O fazendeiro foi-se encostando aqui e ali, escorando-se nas paredes de pau a pique, passou o corredor, atravessou a sala e chegou à varanda.
Sentou-se no banco com dificuldade.
Ficou olhando o vazio, olhos perdidos na sua decadência. Um bando ruidoso de maritacas passou voando. Os passarinhos cantavam nas árvores próximas à casa da fazenda, as quais, apesar da falta de chuva, ainda ostentavam um desbotado colorido verde. Mais ao longe, as quaresmeiras pintavam o céu com seu roxo da Paixão.
Nada daquilo interessava ao velho. Nada enxergava.
Escravas passaram com suas trouxas na cabeça, rumo à fonte.
– A sua bença, sinhô!
– A sua bença, sinhô!
– A sua bença, sinhô!
Não respondeu. Nem ao menos balançou a cabeça numa demonstração de ter ouvido.
Passada a porteira, as escravas já podiam conversar livremente.
– Coitado do Coroné Bento! Tá tão tristinho...
– Coitado nada! Eu é qui sei, Joaquina. Aquilo é ruim qui nem cascavel... Tá é pagano as mardade. De Bento ele num tem nada! Só o qui ele fez cum a sinhazinha
Francisca, né Belarmina? Já dava pra ele ganhá o inferno.
– Ué... O qui qui ocês sabe qui iô num sei?...
– Num si intrumete, Joaquina. Num é assunto pro cê. É coisa do capeta.
Um braço de vento forte sacudiu as folhas das bananeiras da margem do caminho.
– Cruz in Credo! Falá nele ele se achega arreliano com as bananeiras...
As três se persignaram e saíram correndo.
– Aiiiiiii!!!...
Ao ouvir o grito rouco, Severina veio correndo, aflita, e encontrou o velho esparramado na escada que ia para o terreiro.
– Qui é qui ôve, meu Nosso Sinhô Jesus Cristo! Qui qui foi Coroné? Ah!... Pruquê qui o sinhô foi descê a iscada?.. Sabi qui num pode. Sinhazinha Francisca recomendô tanto pru sinhô num descê iscada! Socorro, minha gente! Acode aqui!
Dois escravos que limpavam os chiqueiros vieram correndo.
Agarraram o velho pelos braços e o levaram para o quarto, depositando-o no catre.
O velho estava nervoso.
– Raios! Um homem como eu depender de escravos velhos para viver... Nunca pensei chegar a tal ponto...
A dor ficou forte na perna que já o estava incomodando desde cedo devido ao prurido. A pele brilhava avermelhada.
Severina ajeitou as cobertas e foi embora para a cozinha aprontar o almoço.
O velho sentiu a boca seca, os lábios crestados. Virou-se na cama e pegou a bilha em cima de um banco colocado ao lado do catre. Estava vazia. Não adiantava gritar as escravas. Com a porta fechada e elas lá na cozinha, não iam ouvir.
Conformou-se. O jeito era esperar a hora em que siá Joana viesse trazer o almoço.
Uma abelha entrou pela janela e zumbia... zumbia...
– Mais esta praga!...
O dia passou como os outros.
A rotina de sempre.
Um cheirinho gostoso se evolava do tacho grande, espalhando-se pela cozinha e encaminhando-se para o restante da casa. Doce de laranja da terra. Bastante cravo e canela para dar o gostinho.
Já anoitecia.
A velha Joana levou a tigela de mingau para o Coronel.
Quando voltou à cozinha, foi interpelada pela escravinha Joaquina:
– Vó Joana, qui qui aconteceu nos antigamente com sinhazinha Francisca?
– Num ti interessa. Vai drumi qui é mió.
Joaquina saiu resmungando.
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO IV
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Depois que a neta Joaquina e as outras escravas foram deitar, Joana sentou-se perto do fogão, apanhando aquele calorzinho gostoso nas pernas.
As lembranças foram chegando, chegando, doendo, doendo... Ela é que tinha sido ama de leite de sinhazinha Francisca e a havia criado porque a sinhá Cândida era muito doente. Quinze anos já se tinham passado, mas não dava para esquecer.
Era dia de São Bartolomeu, que diziam ser o dia que mais ventava no ano. As crianças, filhas dos escravos, que naquela época eram muitos, brincavam alegres, ignorantes do que se passava:
“Hoje é dia de São Bartolomeu,
Quem tem roupa vai à Missa,
Quem não tem faz como eu...”
Ventava muito. As bananeiras parecia que tinham endoidecido.
Um grito de criança cortou o espaço. Um grito de criança que nascia. O filho de sinhazinha Francisca.
Um susto interrompeu as recordações de siá Joana.
– Minha Nossa Senhora! O doce garrô...
Joana se levantou e, correndo, pegou uns panos e outro tacho. Com cuidado, foi entornando as laranjas até chegar nas que ficaram agarradas no fundo.
– Bem feito pra mim1 Ficá pensano sem prestá atenção nu sirviço...
A escrava pegou ainda outro tacho. Esse estava cheio de azinavre. Pegou um punhado de sal, jogou ele, levou ao fogo e, quando a vasilha esquentou, foi passando limão com sal até ficar tudo lindo, com aquela cor rosada do cobre.
– Agora é só fazê otra calda e jugá pru cima. Ninguém vai notá qui quemô.
Enquanto a calda entranhava nas laranjas, Joana continuava com suas lembranças.
“Dia mais triste... Coroné Bento mandô tirá a criança da sinhazinha e sumiu cum ela. Uns acha qui foi dada pros cigano qui tava pur perto e qui foro imbora no dia siguinte. Otros acha qui foi colocada numa cestinha narguma porta ou nargum muru, cum doti ô cum dinherinhu, um ‘exposto’, cumo é custume. Num sei... Só Deus sabe. Nunca mais si ouviu falá daquela criança. E nem do pai dela. Ele sumiu qui nem fumaça. Moisés era um moço bão! Pusero ele, quando nasceu, na porta da casa do Coroné lá na vila. Até andaro dizeno qui divia ser filho dele com arguma escrava ou com arguma muié qui num pudia aparecê. Mas ninguém provô nada... Moisés cresceu aqui na fazenda. Fazia de tudo. Era bem mandado. Todo mundo gostava dele. Deve tê fugido pra esse mundo de Deus com medo do Coroné.”
Lá de fora vinha o barulho do vento. Às vezes, um uivo de lobo era ouvido. Mas vinha de muito longe.
Os cachorros latiram, mas pararam logo.
“Deve de sê argum gambá quereno cumê as galinha...”
A escrava levantou-se, ajeitou as achas de lenha que estavam quase caindo. Esquentou as mãos perto das chamas e sentou-se outra vez.
Já estava quase cochilando, por isso levantou-se e começou a andar para espantar o sono.
Uma coruja piou lá fora. O vento sibilou mais forte.
No fogão, a madeira estalou e as cinzas deram uma voada. As chamas do fogo desenharam figuras grotescas na parede.
Barulho de passos arrastados...
Um arrepio começou nos pés e percorreu todo o corpo de Joana.
– Minha Nossa Sinhora! É as arma! Mi acode, Mãe de Deus!
– Nhá Joana...
Era a voz da Belarmina. Joana se acalmou....
– Qui qui é, Belarmina.
– Perciso contá um segredu. Uma coisa terrivi qui aconteceu nu dia qui nasceu a criança da sinhazinha Francisca. Num guento mais guardá issu sozinha. Tenhu qui disabafá. Só eu vi i nun contei pra ninguém inté hoji.
– Pió do que agenti sabi num tem jeito.
– Tem sim, Joana. Muitu pió.
Joana ficou paralizada de medo, pensando no que poderia ser esse segredo...
O silêncio ficou pesado. As sombras na parede pareciam cada vez mais diabólicas. O passado como que sangrava.
– Pru quê qui vassuncê ta tremeno, Belarmina? Pode falá qui a Joaquina já foi deitá...
– Nhá Joana... Todo mundo pensa qui o minino da sinhazinha Francisca foi dado e qui o Moisés, qui todo mundo sabia qui o minino era fio dele, fugiu com medo do Coroné...
– I num foi?
– Num foi não. Naquele mardito dia iô tinha ido buscá umbigo di banera pra fazê pru armoço. Já vinha vortando quando iscuitei uma cunversa. Era do Coroné Bento cum Teodoro, mandano ele pegá a criança, mandá dois iscravo agarrá o Moisés e adispois levá eles pra bem longe na mata. E adispois matasse a criança e o Moisés, mandasse os iscravo interrá os dois, e adispois ainda o Teodoro matasse os iscravo e interrasse eles pra eles num podê contá pra ninguém.
A vasilha de louça, que estava nas mãos de Joana para ela entornar o doce pronto, espatifou-se no chão.
– Entonces é pur isso que vassuncê tem tanto ódio do Coroné...
– I num é pra tê? Agora vassuncê ainda vai tê pena dele?
Joana ficou algum tempo parada, como se fosse uma estátua. E depois disse com voz compungida:
– Agora iô tenho mais pena dele. Agora qui ele perdeu quase tudo, tá duente, velho, os remorsos deve de cumê o coração dele. É um sofredô.
– Qui o quê... Ele num tem coração. Ô entonces o coração dele é podre.
CAPÍTULO V
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O grito do galo soou límpido, claro, na neblina da madrugada. Depois mais outro, mais outro...
Nova noite sem dormir. Coronel Bento calculou: dormira umas duas horas. Acordara em meio a um pesadelo. Um homem de pedra batia um martelo numa mesa e dizia com voz cavernosa: “Esta criança veio para quebrar o orgulho de vosmecê; veio derrubar pedra por pedra tudo o que foi construído pela ambição de vosmecê. Vai tudo virar ruína”.
E então o casarão da cidade foi se desmanchando, as pedras rolando pela rua. Ele corria atrás delas e elas se distanciavam cada vez mais. De repente, ele é que estava correndo na frente e elas querendo pegá-lo.
Acordou suando frio. Uma noite insone é uma tortura. O velho estava doido que amanhecesse.
O luar entrava através da vidraça e clareava a parede, caindo sobre o retrato da falecida Sinhá Cândida, pois a escrava se esquecera de fechar a bandeira da janela. Embora poucos tinham casa com vidraça em Queluz, ele fizera questão de mandar colocar vidros na casa da cidade e na fazenda. Na época em que o fez, tinha muito ouro para dar-se a esse luxo.
Só naquela altura da vida o Coronel avaliava a importância da falecida, que cuidara da vida dele com tanto desprendimento e bondade. Dirigia a casa da cidade e da fazenda com eficiência. Roupas, comida, tudo era perfeito. Sempre submissa a seus caprichos, sempre resignada diante dos maltratos que sofria dele...
Passeou os olhos pelo quarto. Ali estava o oratório. Quantas vezes ela teria ali rezado pedindo a Deus para amolecer o coração dele.?.. Fora muito mau para ela, muito injusto. Por que só tarde demais reconhecia isso?
CAPÍTULO VI
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O vento batia manhoso nas roupas penduradas no terreiro. Joana e Belarmina foram ao varal apanhar as que estivessem secas. Antes, sentaram-se em uma pedra.
– Belarmina, ocê tem qui concordá qui o Coroné mudô com o tempo. Desde quando ele perdeu aquela dinherama no jogo; uns tempo dispois sinhá Cândida caiu na cama e num levantô mais... Iô acho que naquela época ele pôs a mão na consciença. Os amigo da política também abandonaro ele... ele começo a pensá e pegô um poco de humildade.
– É... Mas tem umas hora qui ele ainda é bem ruim. Grita com a gente, xinga. Fala até mar de Deus. Cruiz im Credo!
– Isso é nervoso de gente véia qui já perdeu a força de lutá na vida... Nóis percisa de tê paciença cum ele. Ao menos pra arma de Sinhá Cândida ficá discansada...
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Depois do almoço, o Coronel foi se arrastando pelos corredores. Ao passar pelo quarto de Francisca, resolveu entrar. Era como se estivesse vendo a filha sentada no banco perto da janela, bordando.
Coitadinha! Quanto ela devia ter sofrido ali, sofrido por culpa dele. Era verdade que não tivera juízo... Fizera uma grande ofensa ao nome dele. Mas ele fizera pior, muito pior. Tornara-se um assassino. Mandara matar quatro pessoas, uma delas seu neto. Mas naquele tempo aquilo não pesava na consciência dele. Achava que tinha feito o que devia. Não tinha escrúpulo de mandar matar quando alguém se atravessasse no seu caminho. Agora, sim, sofria pelos seus erros. Como os sofrimentos da vida o tinham mudado... E ali estava ele agora, sem um neto para herdar seu nome e continuar sua linhagem, ele que, embora fidalgo decaído, era da melhor nobreza de Portugal?
Quanto tempo Francisca ficara ali, presa pela própria vontade, não querendo conversar com ninguém, só entregue à sua dor. Até que Dona Cândida adoeceu. Ela reagiu. Tomou conta da casa. Cuidou da mãe com uma dedicação admirável e passou a cuidar dele também, que já estava com os problemas da velhice e a humilhação da ruína.
No princípio, quando ela chegava perto dele, trazia uma expressão de profunda tristeza. Com o tempo, aquela tristeza fora se atenuando, atenuando... Até que um dia conversaram. Ele pediu perdão a ela. Ela também pediu perdão. E as coisas ficaram melhores entre eles.
O Coronel saiu do quarto pensando: “Onde estará agora minha filha Francisca?”
CAPÍTULO VII
Igreja da Ajuda em Redondo (hoje Alto Maranhão)
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Coronel Bento mergulhou o corpo alquebrado debaixo das cobertas.
E, como sempre, vieram as lembranças.
Desta vez lembrou-se do compadre Joaquim, que um dia viera visitá-lo. Conversa vai, conversa vem, ele se queixara, ao compadre, das dores, dos pruridos, das dificuldades para dormir e para andar. Falou até das manchas esquisitas e das feridas que estavam aparecendo por todo o corpo.
– Mas compadre Bento, vosmecê devia ter chamado o cirurgião...
– Ele já veio muitas vezes, compadre. Receitou um mundão de remédios... não valeram nada! Vários benzedores tentaram me curar. Até um pajé que mora pros lado da Paraopeba veio aqui. Já desisti. Só me resta morrer!
– Compadre, eu soube de um homem santo, que mora lá no Redondo. Ele já curou gente que estava bem pior que vosmecê, com chás e rezas, em nome de Deus. Vá lá vosmecê atrás dele! Quem sabe vai encontrar a cura pros seus males?
No dia seguinte, partiram o Coronel e sinhazinha Francisca, agora companheira constante do pai. Até padrinhos de batizados eram juntos.
Conversavam muito. Só uma coisa ela nunca tinha tido coragem de perguntar: “Onde está meu filho?”
Quando chegaram ao Redondo foram, primeiramente, à igreja de Nossa Senhora da Ajuda. Depois saíram à procura do curandeiro.
Triste decepção! Perderam tempo!
O homem ficara lá muito tempo numa fazenda, mas já havia ido embora. Uns diziam que era para o antigo Tejuco, que passara a chamar-se, não havia muito tempo, Diamantina. Outros, que tinha enfiado pelo sertão a dentro, sem rumo. Mas o dono da fazenda garantiu que o Servo de Deus, alcunha pela qual era conhecido, tinha ido trabalhar no garimpo.
Na penumbra do quarto, aquele homem outrora poderoso, arrogante e empedernido chorava como se fora uma criança.
A filha procurava consolá-lo, mas não adiantava.
– Nem ao menos o nome dele conseguimos saber, minha filha! E eu tinha
tanta esperança de encontrar a cura para essa minha doença que ninguém descobre o que é...
– Senhor meu pai, ficamos sabendo pelo menos uma coisa: que ele atende pelo apelido de “Servo de Deus”. Já é alguma coisa.
– De que adianta, se ele sumiu?
– Nós vamos atrás dele.
– Eu não agüento, Francisca. Sofri demais só pra ir no Redondo que é aqui perto, que dirá ir até Diamantina?
– Mas eu aguento. Vou procurar o Servo de Deus – falou decida a filha.
No dia seguinte, Francisca partiu para Diamantina.
Coronel Bento tudo fez para dissuadi-la da idéia, mas na adiantou. Ela estava irredutível.
– Senhor meu pai, eu não volto sem o Servo de Deus.
O Coronel mandou o capataz Teodoro verificar se a carruagem estava em condições de viagem tão longa; escolhesse um escravo mais forte para dirigi-la e fosse também com Francisca para protegê-la em viagem tão perigosa.
– Pode ficar tranquilo, Coronel. Eu trago a sinhazinha sã e salva.
E, naquele rosto antigamente sempre endurecido, as lágrimas correram.
TERCEIRA PARTE
CAPÍTULO VIII
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O Coronel tinha razão. Aquela viagem era muito perigosa. O que aconteceu nela provou isso.
O capataz achou mais seguro que se ajuntassem a uns tropeiros que iam para a mesma direção que eles. Mas que engano! Após algumas horas de viagem a tropa, que carregava mercadoria valiosa, foi cercada por um bando de salteadores.
Os tropeiros reagiram valentemente, mas os salteadores eram ferozes.
O tiroteio estava cerrado.
Francisca e Teodoro se esconderam atrás das ruínas de muro de pedras. Dali observavam os tropeiros, embora reagindo bravamente, serem mortos um a um. Quando eles viram que a luta estava perdida, tentaram fugir levando suas mochilas, mas foram vistos.
Embrenharam-se pela mata e corriam desesperadamente. Chegando a um barranco, deitaram-se no chão e ficaram imóveis.
O barulho de pisadas nas folhas secas anunciava a chegada dos malfeitores que os haviam seguido.
Por sorte os passos se afastaram. Francisca e Teodoro se levantaram cautelosamente. Respiraram aliviados, mas a tranquilidade durou pouco. De repente dois braços agarraram a moça, e dois outros o homem que a acompanhava.
Foram levados por entre as árvores até chegarem a uma clareira, onde o bando se arranchara. Suas mochilas foram pegas e jogadas lá num canto, junto com outras coisas que tinham apreendido lá na tropa.
A noite desceu.
O bando se reuniu em volta de uma fogueira.
Teodoro e Francisca foram amarrados e encostados em uma árvore um pouco distante, tremendo de frio.
Os salteadores confabulavam entre si e, de vez em quando, lançavam olhares na direção dos dois. E riam. Que maldade estariam arquitetando em relação aos prisioneiros? Isso era muito comum entre os salteadores que confabulavam entre si e, de vez em quando, lançavam olhares na direção dos dois. E riam. Que maldade estariam arquitetando em relação aos prisioneiros? Isso era muito comum entre os salteadores.
CAPÍTULO IX
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Enquanto os homens do bando bebiam e cantavam, Francisca e Teodoro conversavam baixinho, tentando descobrir um meio de se livrarem.
– Sem jeito de escapar! Sinto dizer isso, sinhazinha. Os nós estão muito apertados, tanto os das mãos quanto os dos pés.
Francisca já aprendera muito tem a sofrer e a enfrentar dificuldades com resignação e força, mas podia se ver que ela estava agoniada.
Teodoro sabia que muitos sofrimentos os aguardavam, porque os bandoleiros do sertão eram muito cruéis e tinham prazer em torturar. O que mais o preocupava era o que estava reservado a sinhazinha, por ser mulher. Isso fazia o coração dele doer mais. Ficou muito tempo pensativo. Tinha que tomar uma decisão muito importante.
– Sinhazinha Francisca, a gente pode ter pouco tempo de vida. Sinto dizer isso a vosmecê, mas é mais a pura verdade.
– Eu sei, seu Teodoro, mas não tenho medo da morte. Para quem sofreu tanto na vida, vai ser até um descanso.
Pairou um silencio dorido como o latejamento de um espinho inflamado, fincado profundo na carne.
– Sinhazinha, como eu disse, podemos não estar vivos amanhã de manhã. Eu preciso contar umas coisas pra vosmecê, uns segredos que eu guardo há muito tempo. É muito difícil contar. Mas Nossa Senhora vai me ajudar.
Os bandoleiros continuavam com a bebedeira.
Teodoro começou o difícil relato:
– Primeiro vou falar do Moisés. Eu sei que sinhazinha gostava muito dele. Mesmo antes, quando criança, nunca fez pouco caso dele, mesmo ele sendo um enjeitado, porque todo exposto é um enjeitado, costuma sofrer muita humilhação. Mas sinhazinha sempre foi boa com ele. Quando apareceu na porta da casa do Coronel, pai de vosmecê, lá na cidade, do modo como fazem com os expostos dentro dum cestinho, com umas pedras de ouro amarradas num pano, muita gente pensou que fosse filho do Coronel com alguma índia que pôs o menino lá para ele criar. Como o Coronel tinha muito filho bastardo, ficou por isso mesmo. Vosmecê lembra como sinhá Cândida, mãe de vosmecê, implicava com Moisés? Ela devia acreditar naquela história.
Umas lágrimas escorreram na face de Francisca.
– Moisés... Eu só pensava nele, dia e noite. Dormia pensando nele, sonhava com ele, acordava com o seu rosto no meu pensamento. Mas ele me abandonou, em vez de me defender. Ele foi covarde. Sumiu e me deixou sozinha com minha dor...
– Não, sinhazinha, ele não foi covarde. Vou contar a vosmecê, mas, antes, preciso revelar um segredo que eu guardei até este momento. Moisés era meu filho.
Francisca espantou-se. Nunca lhe passara isso pela cabeça.
– Mas por que, seu Teodoro, o senhor, que é um homem tão bondoso, abandonou seu filho? Não foi cruel para ele não ter um pai a seu lado?
– Eu sofri muito, sinhazinha, muito mesmo.
– Mas por quê? Vosmecê sabia que já havia dois expostos na fazenda e não eram criados como os filhos legítimos, mas às vezes até com crueldade. A vida de Moisés não era tão boa assim...
Teodoro, então, resolveu contar a história toda a Francisca:
– Um dia, o Coronel Bento mandou que eu fosse numa fazenda pros lados da Paraopeba comprar um cavalo de raça. Foi lá que eu vi uma escrava muito bonita, morena cor de cobre, cabelos pretos e grossos mas lisos, tão longos que iam até nas cadeiras.
Conversando com um escravo, ele me disse que era uma índia puri, pega a laço, e que morava na fazenda.
Francisca até esquecera as suas aflições ouvindo a história de Teodoro. Mas o homem parecia ter se cansado e calou-se, perdido em seus pensamentos. A moça não resistiu:
– E então, seu Teodoro, o que aconteceu depois?
Antes que ele respondesse, ouviu-se uma gritaria, parecia estar havendo uma confusão. Três homens se engalfinhavam e gritavam:
– É minha!
– Não! É minha!
– De nenhum dos dois. É minha!
Teodoro ficou apavorado. Francisca começou a chorar.
A briga estava se aproximando deles até que... um tiro, mais outro, mais outro.
Dois homens caíram ao chão. Pareciam mortos. O outro segurava o braço e gemia desesperadamente. Os companheiros foram acudi-los. Depois, naturalmente cansados pela confusão, sentaram-se de em volta da fogueira e os prisioneiros foram novamente esquecidos.
Já também mais serenados, o homem e a moça retomaram a conversa. E disse Teodoro:
– Senti que a índia também tinha gostado de mim. Quando passei na porteira da fazenda, virei-me para trás e vi que ela também me olhava. Fui andando devagarinho e percebi que ela vinha caminhando atrás, apertando o passo, até ficar pareada com o cavalo. Eu não sei o que me deu. Não pensei se era certo ou se era errado. Num impulso, agarrei a moça e a coloquei na minha garupa. Saímos disparados, eu puxando o cavalo comprado, e quando chegamos mais longe, apeamos. Abracei a índia e vi que ela tinha gostado. Depois ela montou o outro cavalo e fomos para Queluz. Antes de ir para a fazenda, passei na casa do senhor vigário e contei tudo a ele. Quando menino, eu tinha sido coroinha e o ajudava na limpeza da igreja e de sua casa. Ele me ensinou a ler, a escrever e muita coisa mais. Até um pouco de latim eu aprendi.
– Mas que história mais bonita, seu Teodoro! E aí? O senhor levou a índia para a fazenda?
– Sinhazinha, eu não podia adivinhar a reação do Coronel... Vosmecê me desculpe a falta de respeito, mas eu tive medo de que o Coronel tomasse a índia de mim. Por isso fui ao padre pedir que fizesse nosso casamento em segredo e, até que ele arrumasse tudo, Irati – foi o nome que ela me deu – ficou na casa de uma velha parenta que eu tinha no caminho do Morro do Chapéu. Acabou ela ficando por lá, mesmo depois do casamento. Toda folga que eu tinha, corria para lá.
Francisca escutava emocionada.
– E ninguém desconfiou de nada?
– Não. Ficou tudo bem escondido. Um dia Irati me disse que estava prenhe. Eu não aguentei de satisfação. Quando ela começou a passar mal para ter a criança, eu estava no rancho. O parto foi difícil e, uma dor para a minha vida inteira, ela não resistiu. E eu, além da dor, estava com uma criança nos braços, sem saber o que fazer. Foi então que esperei a sombra da noite, coloquei o menino na cesta e deixei na varanda da casa lá na vila. Antes, bati na porta com muita força e saí correndo. O barulho das batidas, além do choro da criança que se assustara, chamou a atenção das escravas. Foi um rebuliço só. Eu mesmo corri com elas para ver o que era e ainda carreguei o cestinho para dentro de casa.
– Foi assim, sinhazinha, que Moisés começou a vida. Quando ele era bem pequenino, eu fingia nem ligar para ele pra não despertar suspeitas. Depois que cresceu, arranjei um jeito de ele me ajudar e assim ficou meu amigo. Eu gostava tanto de ver vosmecês brincando! Mas quando cresceram mais, comecei a ficar preocupado. Parece que eu estava prevendo o que ia acontecer...
Francisca falou tristemente:
– Eu nunca esqueci Moisés... Mas ele fugiu e nunca mais quis saber de mim.
– Não é bem assim, Sinhazinha. Ainda não contei tudo.
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Os homens do bando continuavam bebendo. Foi quando um sugeriu:
– Vamos jogar, gente! Quem ganhar mata o homem e fica com a donzela.
Seguiu-se uma gritaria de aprovação.
Teodoro aí se apavorou mais. Tinha que fazer logo as outras revelações a Francisca. Ela tinha o direito de saber.
– Olhe, sinhazinha, o que eu vou contar para vosmecê é muito sério. É preciso que vosmecê receba com o coração aberto. Não deixe o ódio entrar nele.
– Minha Nossa Senhora! Vosmecê me assusta! Mas conte, seja o que for.
Teodoro abaixou a cabeça e fechou os olhos, procurado forças para contar:
– No dia em que seu filho nasceu, o pai de vosmecê me chamou e me deu uma ordem terrível: pegasse a criança, mandasse dois escravos amarrarem Moisés e levasse a criança e Moisés...
Um grito interrompeu a narrativa de Teodoro:
– Ganhei! Vou matar o desgraçado e ficar com a sinhá.
O homem veio se aproximando de Teodoro, com a espingarda apontada para ele.
Um tiro!
Francisca fechou os olhos, com o coração dilacerado.
Teodoro também fechou os olhos e, como um relâmpago, brilhou na mente uma prece entregando a alma a Deus. Mas espantou-se, a bala não chegara a ele mas, sim, ao seu agressor, que se estatelou no chão.
Ouviram-se mais tiros e uma gritaria infernal.
Os dois prisioneiros estavam perplexos. Na escuridão da noite que envolvia a mata ao redor, no meio da cena alumiada pelo clarão das chamas, viam os homens se contorcendo e caindo. Não estavam entendendo nada...
A fogueira continuava indiferente ao drama, seguindo seu destino de paulatina consupção.
Passados uns minutos, surgiram os autores da carnificina. Eram também salteadores, mas de outro bando.
A esperança que surgira no coração de Teodoro se desmanchou como fumaça lançada ao vento, pois pensava que fossem soldados. Mas os acontecimentos posteriores fizeram renascer a esperança.
Teodoro e Francisca foram desamarrados. O chefe do bando lhes falou:
– Vosmecês estão com sorte! Acabamos de matar esses miseráveis que estavam atrapalhando os nossos assaltos nestas bandas. Como eu estou muito feliz, vou deixar vosmecês irem embora. Peguem suas mochilas e sumam! Depressa antes que eu mude de idéia e mate vosmecês!
Teodoro e Francisca se espantaram com a magnanidade do malfeitor. Agradeceram e saíram correndo receosos de que ele se arrependesse. Foram tropeçando nas raízes grossas que saíam das árvores, Francisca agarrou a saia num espinheiro custando a soltá-la, Teodoro caiu em cima de um galho caído e esfolou o braço, esbarravam com força nos troncos das árvores, uma loucura! Só quando chegaram ao caminho pararam, já quase sem forças, “pondo a alma pela boca”. De repente começaram a rir, aquele riso nervoso que costuma acontecer quando uma tensão muito forte chega ao fim.
Vencida a luta pela sobrevivência, a aflição de Francisca para saber o que seu pai mandara fazer voltou a desorientar a moça:
– O que o meu pai mandou vosmecê fazer com meu filho e com Moisés? Me diz depressa, Teodoro!
O pai de vosmecê me mandou matar o filho de vosmecê, meu filho Moises e que eles fossem enterrados pelos escravos pelos escravos que iam com a gente. Depois eu matasse os dois escravos e os enterrasse, para não ficar nenhuma testemunha do crime.
Foi uma espada atravessada no coração da moça. Era como se ela mergulhasse no inferno. Uma onda de ódio inundou a moça, apesar da advertência de Teodoro. O corpo de Francisca estremecia preso de uma descarga nervosa. Um grito lancinante foi ecoando entre as árvores da mata, um grito de animal ferido, um grito inumano.
– Não é meu pai! É um monstro, um miserável!
Teodoro ficou estático e sem voz. A pressão a que estivera sujeito desde algumas horas afetara seu corpo e sua alma. Via que a dor queimava as fibras do coração de Francisca, assim como a larva do vulcão queima o que está à sua frente. Francisca explodiu em manisfestações de desespero e ódio.
Mas o homem não deixou que a explosão de dor permanecesse por muito tempo. Reagiu e conseguiu falar:
– Sossegue, sinhazinha. Calma! Perdoe o pai de vosmecê. Ele já pagou caro os pecados dele.
– Como vou ficar calma? Como vou perdoar? Ele mandou matar meu filho, meu filho! E vosmecê também é um monstro! Matou o seu filho e o meu filho!
Francisca avançou sobre o capataz gritando, sem ouvir o que ele tentava desesperadamente falar.
QUARTA PARTE
CAPÍTULO X
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A dor que sentia ao presenciar tanto sofrimento transparecia no rosto do capataz. De repente, teve que cometer uma ousadia. Sacudiu com força a jovem para acalmar a histeria que a dominava e conseguiu falar:
– Calma, sinhazinha, eu não cumpri as ordens. Eu não podia matar meu filho e meu neto!
Francisca lançou-se nos braços de Teodoro, ainda presa daquela crise emocional:
– Que foi que vosmecê fez? Me conte!
O homem começou o relato:
– Eu fui até bem longe. Lá para os lados de Guarapiranga. O tempo todo caminhamos calados. Soltei primeiro os escravos. Disse a eles que, se voltassem a Queluz, seriam mortos pelo Coronel Bento. Em seguida entreguei a criança a Moisés, dei para ele umas economias que eu tinha guardado para uma precisão. Recomendei que fosse o mais longe possível e não voltasse nunca mais a Queluz, que a ordem do Coronel era que matasse ele e a criança. Moisés me olhou de um modo estranho, como se não entendesse o que estava acontecendo...
Francisca estava emocionada.
– Então Moisés e meu filho podem estar vivos? Vosmecê contou pra ele que era seu pai? Onde eles estão agora?
Teodoro até riu da confusão dela. Funcionou como um desafogo à tensão emocional que o velho sofria nos últimos tempos.
– Sinhazinha, é muita pergunta de uma vez só... Fique tranquila. Com a graça de Deus eles estão vivos, mas onde? Só Deus sabe... Não contei a Moisés que ele era meu filho. Não sabia como reagiria... Com uma lágrima escorrendo pelo rosto, ele me disse:"– Deus pague vosmecê! E partiu. Fiquei olhando até que ele sumisse no meio do mato. Depois ajoelhei no chão e chorei como uma criança ou uma mulher..
O homem abraçou Francisca e depois lhe disse, muito carinhosamente:
– Sinhazinha, se quiser que Deus dê a vosmecê essa graça, não deixe nem um pedacinho de ódio em seu coração. Só de vosmecê estar fazendo tanto sacrifício pelo Coronel já é uma luz que vai levar aos dois.
Aquelas palavras agiram como um bálsamo no coração de Francisca e lhe deram força. Não importava que as pernas doessem, os pés se ferissem, o coração palpitasse, o sol queimasse na cabeça... Depois que achasse o curandeiro para o pai, iria lançar-se ao mundo para descobrir o paradeiro de seus dois entes amados. Uma expressão determinada iluminou o rosto de Francisca:
– Um dia vou achar meu filho e Moisés.
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Em mais uma noite de insônia, o Coronel Bento levantou-se e foi até o oratório da falecida Cândida.
Olhou as imagens durante um bom tempo. Tentou visualizar o rosto da mulher para pedir-lhe perdão.
Os sofrimentos dos últimos tempos ensinaram muita coisa ao velho fazendeiro.
– Perdão, D. Cândida! Eu não fui o marido que vosmecê merecia. Sei que está no céu. Pede a Deus, Nosso Senhor, que proteja a nossa filha, que saiu pelo mundo procurando cura para o sofrimento de um homem como eu, que tanto fiz a menina sofrer!
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Quando chegaram na estrada, Teodoro e Francisca se horrorizaram. Ninguém havia passado ali ou, se tivesse passado, fora embora sem fazer nada.
Todos os tropeiros estavam mortos e também o escravo do Coronel, que dirigia a carruagem. Esta estava virada e toda destruída. Os cavalos, uns morreram e os outros deviam ter fugido. Por sorte, havia dois comendo o capim da beirada da estrada e eles se apoderaram deles para prosseguiram a viagem.
Mais adiante, encontraram um rancho onde puderam passar a noite.
QUINTA PARTE
CAPÍTULO XI
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A manhã chegou fresquinha e luminosa. Mas, dentro em pouco, a canícula iria castigar os viajantes.
Ainda faltava um bom trecho de viagem. Mesmo lembrando-se do que acontecera com a tropa que acompanhavam nos dias anteriores, Teodoro ainda achou mais prudente juntar-se a uma tropa que estava saindo do rancho. Perigo por perigo, era preferível irem em companhia.
Francisca se distraía observando a tropa, enquanto viajavam sob um sol inclemente.
Na frente seguia o “burro de guia”. Seu peitoral tinha seis cincerros e pisteira de prata adornava a parte da frente da sua cabeça. Tinha o privilégio de carregar menos peso e marcava a viagem, pois conhecia os caminhos.
A tropa era grande. Havia seções de quatro cavalos cada uma. Levavam bruacas (pequenos sacos de couro cru) carregadas de sal e muitos fardos de diversas mercadorias.
Percorreram um trecho grande em que só encontravam, de longe em longe, taperas, algum rancho de paredes de pau-bambu, coberto com folhas de palmito; num ou noutro lugar, lá em baixo, no campo, havia uma fazenda. Passaram rios, ribeirões, viram elevadas quedas d’água que ostentavam um líquido cristalino brilhando ao sol.
Teodoro se encantava com a vegetação daquelas terras: perobas, jacarandás, sucupiras,
aroeiras, angicos, cedros, braúnas... Ou se divertia vendo os animais que encontravam quando passavam entre matas mais fechadas: capivaras, coatis, pacas, queixadas, tamanduá.
Um gavião-rei cortou os ares, majestoso. A viagem tinha seus incômodos, mas, também, suas belezas.
O chefe ia a cavalo, na frente, rodeado pelos ajudantes, armados de espadas, usando compridas botas castanhas de couro e com um chapéu de feltro cinzento claro.
CAPÍTULO XII
A viagem prosseguia sem tropeços. De vez em quando Francisca tinha crises de desespero, que conseguia ocultar. Pensava no filho e em Moisés, soltos pelo mundo... Que estaria acontecendo com eles? Mas seguia o conselho de Teodoro e isso ajudava bem. O capataz contara para ela que um sacerdote, passando na fazenda quando em visitas pastorais, vendo o seu sofrimento, ensinara algo muito importante: não deixasse que pensamentos tristes dominassem o seu pensamento, porque isso poderia influenciar nos acontecimentos e trazer mais tristeza. Assim, começava a prestar atenção na paisagem, envolver-se toda em sua beleza. Isso ajudava a superar a dor.
Já tinham andado bastante quando chegou a hora de pararem para comer.
Os escravos armaram o tripé para colocar a panela e o cozinheiro, quase um menino, pôs o feijão a cozinhar. Teodoro desdobrou um couro para sinhazinha deitar e descansar um pouco enquanto a comida ficava pronta.
Comeram carne seca cozida no espeto, feijão misturado com farinha de mandioca, torresmo, couve e pimenta. Teodoro tomou, também, uma cachacinha. A sobremesa era rapadura com melado e um café fumegante servido em cuités.
Com isso refizeram as energias e passaram para mais uma etapa da viagem.
Iam por atoleiros, subidas e descidas perigosas, por picadas sinuosas, brejos, escarpas, matas, descampados.
Algumas flores vermelhas, amarelas, apareciam de vez em quando, porém mais era o verde mesmo. Num trecho da estrada, uma bela visão: muitos puçazeiros (jabuticabeiras do cerrado) carregadinhos de flor branca agarradinhas nos troncos e galhos.
Foi indo, o crepúsculo chegou, acendendo uma fogueira no poente. Algumas nuvenzinhas de ouro davam mais encanto ao céu sobre o horizonte.
Pararam em um rancho para passar a noite. Era a hora em que os tropeiros, em volta de uma fogueira, pegam suas violas e as toadas se elevavam no ar, às vezes alegres, às vezes galhofeiras, quase sempre nostálgicas.
De longe, Francisca apreciava a cantoria.
CAPÍTULO XIII
Viola de Queluz
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Um tropeiro, o Manuel, tinha uma viola de Queluz de que muito se gabava. Sonora igual a ela não havia.
– Minha gente! Esta viola já me salvou de apuro. Já me tinham contado que os índios de uma tribo que ficava nas terras onde eu estava eram muito bravos, comiam gente, mas que se o prisioneiro soubesse cantar bem e fazer trovas, eles poupavam da morte. Pois não é que, poucos dias depois, eu fui pego na mata por esses índios. Antes que eles me tomassem a viola, comecei a dedilhar e a cantar:
Lourenço, abre a porteira,
que a tropa do Sérgio evém.
Tem uma mula de guia,
que não respeita ninguém.
Na mesma hora eles me largaram e começaram a fazer festa. Fiquei vários dias lá na tribo. Foi indo eu fiquei cansado de cantar toda hora e, aproveitando a liberdade que eles me davam, fugi pra bem longe.
– Então canta pra nós também, Manuel.
– Lá vai, minha gente:
Maria, por caridade,
não ama tropeiro, não.
Tropeiro é home bruto,
bicho sem combinação.
Maria escute o conselho,
sossegue o seu coração.
Maria, por caridade,
tenha de mim compaixão.
A noite estava linda. No céu a lua clarinha derramava sua luz nos campos e nas matas. A turma começou a gritar:
– Canta mais uma, canta!
Gabriel não teve outro jeito. E continuou a cantoria.
O tropeiro não goza prazer
Sua vida, contínuo penar:
chega de tarde no rancho,
que trabalho, meu Deus vai me dar!
Comendo feijão com torresmo,
escolher para cama um lugar,
triste vida de tropeiro, coitado.
É chegar a tropa do pasto,
eu já ouço o cincerro tinir;
couro em cima do lote,
os cabrestos já vou repartir.
Se o chefe da tropa não ficasse bravo, a cantoria ia até o amanhecer.
CAPÍTULO XIV
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De manhãzinha, retornaram à caminhada. Perto de meio-dia, o chefe falou:
– Seu Teodoro, já estamos chegando no Tejuco, ó... o senhor me desculpe. Inda não acostumei; agora é Diamantina.
A moça contemplou a paisagem grandiosa que se descortinava ao redor.
Finalmente chegaram.
Perguntaram, em uma estalagem, se conheciam o servo de Deus, um homem que fazia curas. Um garimpeiro que estava sentado em um banco levantou-se solícito:
- Se conheço! Ele me curou depois de muitos anos que eu estava no catre. Deus abençoe o santo homem!
Francisca sentiu o coração bater apressado:
– E onde ele mora?
O homem informou:
– Minha senhora, ele morava aqui perto, mas mudou-se para as proximidades do garimpo. Parece que ele também quer achar diamante.
Saíram procurando o garimpo, até que um velho deu a informação desejada:
– Vosmecê quer ir ao garimpo? Pode desviar aqui que o senhor chega lá.
Teodoro e Francisca andaram mais um pouco e aí começaram a ouvir o canto dos escravos trabalhando no garimpo. Um deles cantava:
Ei é lambé
Quero me cabá no sumidô
Lamba de vinte dia
Ei lambá
Quero me caba no sumido
E o coro completava: Ei ereré...
Francisca não se continha de felicidade. Tinham conseguido chegar ao garimpo. Iam encontrar o servo de Deus!
– Graças a Deus! Chegamos ao fim da nossa missão!
E começou a cavalgar com entusiasmo.
A música ficava cada vez mais próxima.
– Que cantoria é essa, seu Teodoro?
– É o escravo queixando-se do serviço duro – lambá – e pede a morte.
– Coitado! – condoeu-se Francisca.
Até que, enfim, chegaram até um dos maiores garimpos da região. Quando perguntaram sobre o Servo de Deus, um minerador informou:
– Ele foi embora ontem.
– Para onde o Servo de Deus foi? – perguntou a desolada Francisca.
Ninguém sabia.
Foram até a vila. Iam batendo de porta em porta, até que, numa estalagem, disseram que ele tinha passado a noite lá mas saíra cedo porque ia viajar.
E para onde ele ia?
– Ele não falou, mas disse que ia para bem longe...
Teodoro então resolveu:
– Sinhazinha, temos que voltar. É inútil prosseguir nesta procura.
Francisca não teve argumentos contra a resolução de Teodoro. Dali mesmo pegaram a Estrada Real de volta a Queluz.
SEXTA PARTE
Capítulo XV
Estalagem da Varginha
Óleo em tela de Cidinha Dutra
Foram mais vários dias de dificultosa viagem. Os primeiros de chuva intensa. Dormiam em estalagens à noite. Durante o dia iam pelos caminhos, perguntando aos que vinham em direção oposta se tinham encontrado o Servo de Deus. Não. Ninguém tinha visto.
Já estavam a um dia e uma noite de Ouro Branco quando pernoitaram em uma estalagem. Na hora em que se levantou, ao encontrar-se com Teodoro, Francisca se assustou ao ver cair de sua roupa uma aranha escura e cheia. Teodoro matou-a e tranquilizou Francisca.
Prosseguiram a viagem. Já se aproximavam de Ouro Branco quando Francisca começou a sentir uma dor violenta no braço. Calvagaram algum tempo com a moça desatinada de dor. Ao passar pela estalagem da Varginha, Teodoro viu que, embora já bem perto de Queluz, não havia condições de prosseguir.
A mulher do estalajadeiro teve muito cuidado com a hóspede. Ajudou-a a deitar, deu-lhe uma mezinha e, depois, pensou em tirar a roupa da moça e dar-lhe uma de suas camisolas para dormir. Assim o fez e teve um susto. O braço da moça tinha uma terrível mancha escura.
Além da dor, a moça agora estava com febre e prostrada.
O estalajadeiro prometeu ver se conseguia um cirurgião, mas não havia nenhum em Ouro Branco. Mas Deus havia de ajudar que passasse algum em viagem. Ele ficaria atento.
Teodoro foi para o quarto da moça e ficou cuidando dela a noite toda.
O homem levantou-se do banco, onde passara a noite sentado vigiando a doente,. A manhã o pegara ali, tão acordado quanto estava ao cair a noite. De tempos em tempos verificava se Francisca estava com febre. Quando isso acontecia, mergulhava um pano na bacia, depois torcia bem e colocava na testa da moça. Pelo menos por algum tempo esse comportamento funcionara.
Chegou à janela, que dava para um terreno inculto. Um matinho rasteiro, umas flores raquíticas, plantas espinhentas e, mais adiante, um emaranhado de arbustos. Além do mais, embora a chuva da noite houvesse amainado, o dia estava cinzento, e aquela melancolia parecia acentuar-se naquele lugar. Uma visão desoladora.
Foram mais vários dias de dificultosa viagem. Os primeiros de chuva intensa. Dormiam em estalagens à noite. Durante o dia iam pelos caminhos, perguntando aos que vinham em direção oposta se tinham encontrado o Servo de Deus. Não. Ninguém tinha visto.
Já estavam a um dia e uma noite de Ouro Branco quando pernoitaram em uma estalagem. Na hora em que se levantou, ao encontrar-se com Teodoro, Francisca se assustou ao ver cair de sua roupa uma aranha escura e cheia. Teodoro matou-a e tranqüilizou Francisca.
Prosseguiram a viagem. Já se aproximavam de Ouro Branco quando Francisca começou a sentir uma dor violenta no braço. Calvagaram algum tempo com a moça desatinada de dor. Ao passar pela estalagem da Varginha, Teodoro viu que, embora já bem perto de Queluz, não havia condições de prosseguir.
Foram mais vários dias de dificultosa viagem. Os primeiros de chuva intensa. Dormiam em estalagens à noite. Durante o dia iam pelos caminhos, perguntando aos que vinham em direção oposta se tinham encontrado o Servo de Deus. Não. Ninguém tinha visto.
Já estavam a um dia e uma noite de Ouro Branco quando pernoitaram em uma estalagem. Na hora em que se levantou, ao encontrar-se com Teodoro, Francisca se assustou ao ver cair de sua roupa uma aranha escura e cheia. Teodoro matou-a e tranqüilizou Francisca.
Prosseguiram a viagem. Já se aproximavam de Ouro Branco quando Francisca começou a sentir uma dor violenta no braço. Calvagaram algum tempo com a moça desatinada de dor. Ao passar pela estalagem da Varginha, Teodoro viu que, embora já bem perto de Queluz, não havia condições de prosseguir.
A mulher do estalajadeiro teve muito cuidado com a hóspede. Ajudou-a a deitar, deu-lhe uma mezinha e, depois, pensou em tirar a roupa da moça e dar-lhe uma de suas camisolas para dormir. Assim o fez e teve um susto. O braço da moça tinha uma terrível mancha escura.
Além da dor, a moça agora estava com febre e prostrada.
O estalajadeiro prometeu ver se conseguia um cirurgião, mas não havia nenhum em Ouro Branco. Mas Deus havia de ajudar que passasse algum em viagem. Ele ficaria atento.
Teodoro foi para o quarto da moça e ficou cuidando dela a noite toda.
O homem levantou-se do banco, onde passara a noite sentado vigiando a doente. A manhã o pegara ali, tão acordado quanto estava ao cair a noite. De tempos em tempos verificava se Francisca estava com febre. Quando isso acontecia, mergulhava um pano na bacia, depois torcia bem e colocava na testa da moça. Pelo menos por algum tempo esse comportamento funcionara.
Chegou à janela, que dava para um terreno inculto. Um matinho rasteiro, umas flores raquíticas, plantas espinhentas e, mais adiante, um emaranhado de arbustos. Além do mais, embora a chuva da noite houvesse amainado, o dia estava cinzento, e aquela melancolia parecia acentuar-se naquele lugar. Uma visão desoladora.
Desoladora como sua vida.Seu filho se chamava Moisés. Porém Moisés era ele.
Lembrou-se do padre de quem era coroinha. Um dia o bondoso sacerdote contou a história de Moisés. Suas lutas como homem de Deus. Sua fé e persistência ao livrar os judeus do cativeiro no Egito. Achou a história bonita, mas dela lhe ficou uma impressão amarga, como se ele sentisse o sentimento de frustração daquele homem ao contemplar de tão perto a Terra Prometida e saber que não entraria lá.
Ele se sentia, naquele momento, encostado à janela, como aquela figura do Antigo Testamento. Quase tivera uma vida de amor plenamente realizada. Quase pudera ser um pai que guiasse o filho pelos caminhos da vida. Estivera a pouco de encontrar o Servo de Deus para curar o Coronel. Estava quase chegando de uma viagem tão longa e quase entregando ao patrão a filha dele sã e salva.
SÉTIMA PARTE
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CAPÍTULO XVI
Encostado à janela, Teodoro continuava pensando, com duas palavras terríveis martelando em sua cabeça: SEMPRE QUASE, SEMPRE QUASE, SEMPRE QUASE...
Até que seu doloroso pensamento foi interrompido. Bateram levemente na porta. Devia ser o hospedeiro querendo saber notícias de Francisca. Era um homem bondoso e prestativo Mas Teodoro parecia estar com os pés doloridos agarrados ao chão, sem disposição para mexê-los. Assim, apenas disse:
– Pode entrar.
– Desculpe bater tão cedo à porta de vosmecê, mas o estalajadeiro me disse que havia uma pessoa doente e eu vim oferecer meus préstimos.
A voz chamava a atenção. Era ao mesmo tempo forte e suave. Voz de quem reflete muito e conhece seu poder.
Só então Teodoro virou-se lentamente e viu um homem com espessa barba preta, pele morena e, o que mais ressaltava em seu rosto, os olhos escuros, penetrantes, profundamente penetrantes e que, ao se fixarem nele, brilharam mais. De repente, um largo sorriso assomou ao rosto do desconhecido:
– Seu Teodoro!!!
E, correndo ao encontro do estupefato homem, deu-lhe um abraço mais que caloroso.
Só então, olhando de perto, Teodoro reconheceu o recém-chegado. Mas ficou mudo, em estado de choque, até que conseguiu balbuciar: – Moisés...
Não! Teodoro não conseguia acreditar. Era bom demais para ser verdade!
– Mas como vosmecê veio parar aqui?
– É uma história bem comprida que eu vou contar. Mas o que é que vosmecê está sentindo?
– Não sou eu, Moisés. É Sinhazinha Francisca.
Só então Moisés percebeu o catre e a moça que ali estava deitada.
Acercou-se, aflito, ao leito e, naquele momento, iniciou-se uma luta inclemente entre Moisés e a morte que inclemente se aproximava.
Moisés foi incansável no atendimento a Francisca. A moça ardia outra vez em febre.
Após dar à doente um remédio que trazia no seu alforge, Moisés viu que a febre ia diminuindo, mas a moça continuava inconsciente.
Quando Moisés perguntou se acontecera alguma coisa, se algum bicho mordera a moça. Teodoro contou disse não saber, mas falou sobre a aranha que caíra da roupa de Francisca, já havia quase dois dias. Moisés afastou a blusa da moça e viu, próximo ao ombro, uma enorme e terrível mancha preta; correu outra vez ao alforge e tirou uma pedra redonda, mas um pouco amassada, com uns desenhos nela riscados. Mandou que Teodoro buscasse um pouco de leite, no qual mergulhou a pedra, colocando-a sobre o local, que apresentava um círculo arroxeado, quase negro. A pedra, na mesma hora, agarrou-se à pele.
Estava confirmada a sua suspeita. Fora a aranha que mordera o braço de Francisca.
Moisés explicou a Teodoro o que fizera. Alguma aranha muito venenosa entrara na blusa de Francisca e a mordera. Não fora percebido porque só vinte quatro horas depois os sintomas se manifestavam. Aquela era uma pedra de índio, que lhe fora dado por uma índia carijó que conhecera em suas andanças. O veneno que já se estava espalhando no corpo da pessoa, era chupado para dentro da pedra. Mesmo que alguém quisesse tirá-la, ela não sairia. Quando o veneno fosse todo sugado, a pedra se desprenderia sozinha.
Quando notou que a moça já estava mais tranquila, a respiração regularizada, o coração sem palpitações, Moisés saiu para procurar, nos terrenos próximos, algumas folhas e raízes. Amassou tudo com um pilãozinho que também trazia no alforge, espremeu num pano limpo, e o líquido que resultou da atividade foi dando às colheradas à doente. Tranquilizou Teodoro. A moça só iria acordar no dia seguinte porque a beberagem a faria dormir. E era bom porque o sono repararia as forças.
Os dois passariam a noite no quarto de Francisca para vigiar o seu sono e verificar se não apareceria algum problema.
– É... se vosmecê não tivesse aparecido... nem quero pensar. Sinhazinha ia morrer. Eu estava agoniado.
– Realmente estava sujeito a isso acontecer. Com a graça de Deus cheguei a tempo.
CAPÍTULO XVII
Mas outra coisa, além da doença de Francisca, atormentava o homem desde que reconhecera Moisés. Onde estaria o menino? Por que não estava com o pai?
E assim, depois de dar graças a Deus por estar em bom caminho a saúde da moça, perguntou ansioso:
– E o menino? Que aconteceu com ele?
– Meu filho está muito bem! Quando mudei do Redondo, deixei com uma família amiga que tinha muito amor por ele. Era a família do fazendeiro que me deu serviço e acolheu meu filho. Ele e sua mulher D. Emerenciana nunca tiveram filhos e fizeram, do meu, o filho deles. Ele se chama... Adivinha!... Teodoro, em homenagem ao nosso salvador.
As lágrimas escolheram pela face do homem que acabara de reencontrar seu filho, um segredo que resolveu não contar a Moisés.
– Agora vou contar a minha história de depois que vosmecê nos mandou fugir pelo mato – disse Moisés.
Estavam sentados junto à janela do quarto de Francisca. Eram seus devotos guardiães.
– Realmente estava sujeito a isso acontecer. Com a graça de Deus cheguei a tempo
Teodoro estava curioso para saber a história de Moisés, por isso ouvia atento.
– Quando vosmecê me deixou na mata, e mandou que eu fosse para bem longe, fui andando desnorteado. A criança começou a chorar de fome e de frio. Já tinha andado muitas horas quando cheguei num descampado. E o que eu encontro? Uma taba de índios puris.
Teodoro até arrepiou. Muita coincidência. Ou seria a força do sangue de Atira... Ela era uma índia puri... E dela ele herdara a cor morena, aquele cabelo liso e forte.
– Eu estava com medo, principalmente pela criança, porque sempre ouvira falar que os puris eram índios bravos. Mas eu acho que me acharam parecido com eles, embora eu tenha os olhos claros. Afinal, eu não sei a minha origem... Poderia ser um deles... Sendo ou não, o certo é que me receberam muito bem. Teodorinho foi criado no meio das outras crianças. No tempo em que convivi com eles, vi que são mansos, tranquilos; só se enfurecem quando são provocados. Mas uma coisa é verdade. Eles não esquecem as ofensas. Aí são vingativos.
Até que a minha vida era boa lá. Ia pescar com eles. Imagine vosmecê que pescavam com cipó timbó, o qual embebedava os peixes... Eu ajudava na plantação de mandioca, de batata-doce, de milho, na colheita de frutos...
Ajudava o pajé quando ele saía para buscar ervas medicinais, que ele usava em seus rituais de cura. Foi assim eu aprendi muita coisa da maneira de curar.
Mas um dia me dei conta de que meu filho estava sendo prejudicado em sua criação. Os puris são um povo bem primitivo. Vosmecê imagine só que eles fugiam do sol, porque achavam que fazia mal. Não sei se era por isso que eles tinham uma estatura tão pequena. Mas não foi só esse o motivo. Um puri de uma outra aldeia chegou um dia com uma notícia aterrorizante. Os homens brancos estavam levando maldosamente a peste das bexigas para as tabas dos puris. Era um modo fácil de acabar com eles. Pegavam roupas dos bexigosos e punham na lagoa que eles usavam.Se era verdade, eu não sabia, mas não podia me arriscar.
– Olhe Moisés, eu já tinha ouvido falar uma coisa assim. Em uma taba tinham morrido todos os índios. Foi uma maldade! Que risco vocês correram... Mesmo que não tenham contaminado todas as tabas, poderiam ir na de vosmecês...
– Eu até que gostava daquela vida tranquila... Admirava aquela gente que não tinha ambição, só trabalhava o necessário para sobreviver. Teodoro era feliz, cuidado por todas as mulheres da tribo. Estava ainda hesitante quando aconteceu um fato que me ajudou a resolver minha vida.
Moisés levantou-se e foi olhar se estava tudo bem com a moça. Voltou e continuou sua narrativa:
– Numa das minhas saídas para arraiais próximos, fiquei conhecendo um fazendeiro que morava no Redondo. Ele tinha ido tratar venda de mercadorias em Guarapiranga. No caminho, foi atacado por bandoleiros que lhe roubaram o dinheiro e o ouro que carregava. Bateram muito nele. Pensando que estava morto, deixaram o pobre coitado estirado no caminho. Eu ia passando e vi aquele corpo no chão. Pensei: “Vou dar para ele uma sepultura digna.”
Quando fui pegar o homem, notei que ele estava respirando. Levei o pobre coitado para a taba. Foram vários dias em que o pajé cuidou dele. Eu, como sempre, observava tudo... e aprendia muita coisa. O desconhecido foi melhorando, retomou a consciência. Um dia contei-lhe as minhas preocupações e ele me disse: “Vosmecê vai comigo para minha fazenda quando eu já estiver aguentando a montar. Foi assim que cheguei a Redondo.
Lá eu trabalhava de tudo que precisasse. Tornei-me o homem de confiança do fazendeiro.
Teodorinho estava feliz. D. Emerenciana era toda carinhosa com ele. As escravas faziam de tudo para agradar o menino.
– Um dia eu salvei da morte pelas bexigas um escravo da fazenda. Depois, um tropeiro que tinha ido levar carga para o Coronel José. Aí a fama correu e apareceu gente de fora me procurando. O patrão não se importava. Ele até se divertia com o movimento. Além de usar as ervas, que eu colhia pelas redondezas, eu também rezava umas orações que aprendi com o padre nos meus tempos de coroinha. Por causa disso, começaram a falar que eu era santo. Mas eu dizia: “Não sou santo, minha gente. Sou apenas um servo de Deus.” Começaram, então, a me chamar de Servo de Deus. Não houve jeito de mudar.
Francisca gemeu. Correram os dois até o catre. Ela começava a voltar a SI. Moisés olhou a mancha. Já tinha clareado e diminuído o seu diâmetro. Novo gemido. A moça tentou virar-se na cama. Depois, lentamente, abriu os olhos. O primeiro rosto que viu foi o de Moisés, sorrindo para ela. Em seguida, viu Teodoro. Sentou-se, no catre, bruscamente. Seu rosto era de total perplexidade, a mente ainda confusa pelo que passara.
Os momentos seguintes foram de revelações. Impossível descrever a intensidade das emoções e reações daquelas três pessoas.Quando o momento emocional serenou, Francisca perceber que Teodoro não contara a Moisés a sua origem. Ela exigiu que o homem revelasse tudo ao filho.
Depois de tudo esclarecido, estava reunida uma família.
OITAVA PARTE
CAPÍTULO XVIII
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No mesmo dia, tomaram a direção de Queluz. Desviaram a rota e chegaram até o Redondo, porque Francisca e Teodoro não conseguiam conter a vontade de conhecer o rapazinho, ao qual prometeram buscar logo que fosse possível.
.....................................................................................................................
Na fazenda, o barulho do pilão se misturava ao do machado batendo na lenha. A porta do quarto do Coronel estava aberta e deixava entrar a fumaça que vinha da cozinha. A lenha devia estar verde.
Desde a aurora, de sua cama, o velho acompanhava os ruídos da casa. Às vezes cochilava, mas logo acordava.
Nos últimos dias, uma grande calma se apoderara dele. Mas a mudança já havia começado antes, desde que Francisca partira naquela empreitada de amor filial. Desde então seu pensamento estava todo centrado na filha, o último bem que lhe restava de um passado de riqueza e poder.
O Coronel conseguia até raciocinar, sem parcialidade, sobre certos acontecimentos. Francisca o fizera sofrer, fizera. Ela o desonrara. Porém ele a fizera sofrer também. Sempre fora prepotente. Ela vivia trancada com a mãe naquela roça, sem convivência constante com o povo da vila. Ele arrancara de seus braços o filho recém-nascido e mandara matá-lo. Francisca compensara o seu erro cuidando da mãe doente com desvelo e depois cuidando dele, mostrando seu perdão, chegando ao ponto de pôr-se ao mundo em busca de alívio para o sofrimento dele.
Onde estaria Francisca? E se tivesse morrido nos caminhos tão perigosos? Bandoleiros, animais ferozes, índios... Meu Deus! Como pude deixar minha filha partir?...
O Coronel Bento, que antes zombava de Deus, passou a rezar muitas vezes ao dia, no oratório da falecida sinhá Cândida pedindo perdão a Deus e proteção para Francisca.
Um dia, Belarmina chegara espantada na cozinha, pondo a alma pela boca:
– Gente do céu! Ceis num imagina o qui eu vi agora! Fui vê se Coroné quiria arguma coisa. Qui vale qui abri a porta divagarinho i ele nem mi viu. Ceis querdita qui ele tava rezano ajuelhado no chão, perto do oratório de Sinhá Cândida?
Ninguém queria acreditar. Mas era uma verdade cada vez mais frequente desde um dia em que passara um padre por lá. Ele estava indo para uma fazenda da região para celebrar o casamento da filha de um fazendeiro. Não sei por que cargas d’água deu com o lombo na fazenda das Paineiras Velhas. A velha Belarmina, ao ouvir as palmas que denunciavam algum visitante, vendo que era um padre, mandou que ele entrasse, usando de toda a reverência.
Depois de servir para ele um bom café, com broinhas de fubá e bolo de mandioca, levou a mochila do padre para o melhor quarto. O sacerdote não podia seguir viagem porque já era bem de tardinha. Antes de deitar-se, ele foi agradecer ao Coronel pela acolhida.
Após se cumprimentarem e baterem um papo sobre trivialidades, de repente o Coronel começou a chorar. O padre tentava consolá-lo quando o velho lhe falou:
– Padre, vosmecê chegou na hora certa. Foi Deus que me enviou vosmecê. Eu quero me confessar!
Foi uma longa e demorada confissão.
O Coronel contou todas as maldades que cometera durante a sua vida. Estava arrependido.
Além de dar a absolvição, padre Antônio, assim se chamava, trouxe paz à pobre alma com suas palavras sábias e bondosas.
A vida tem dessas coisas... Às vezes não somos nós que buscamos o caminho, mas às vezes é ele que passa por nós. Um caminho abençoado passou na frente do Coronel Bento. No dia seguinte, uma espantosa mudança, transparecia forte naquela manhã, até no trato com as escravas.
O velho acabara de almoçar. Comera bem, como não fazia havia muito tempo. A confissão da véspera tinha dele um novo homem, cheio de fé e esperança. Foi-se arrastando para o quarto.
– Um milagre de Nosso Sinhô! – dissera Belarmina, com as mãos postas.
CAPÍTULO XIX
Ele sentia uma grande paz, uma confiança de que Deus traria sua filha de volta. Nem se importava mais que ela trouxesse o Servo de Deus. Ele queria é que ela voltasse sã e salva.
A porta do quarto se abriu, rangendo levemente.
– Pai, estou de volta!
– Ah, minha filha! Me abraça! Deus seja louvado! Eu não aguentava mais ficar sem vosmescê!
– Eu também estava com muita saudade de vosmecê, senhor meu pai. Mas vosmecê nem perguntou se encontrei o Servo de Deus...
– Filha, isso nem importa mais para mim. Eu queria era vosmecê nesta casa! – falou chorando o velho Coronel.
– Mas eu trouxe o Servo de Deus. Ele vai curar vosmecê, meu pai.
O quarto estava em penumbra, com a janela meio fechada. Mas o velho, de todo jeito, não tinha por onde reconhecer Moisés, porque a doença lhe afetara a vista. Os olhos estavam sempre embaçados. Além disso, aquela barba cerrada, já começando a ficar grisalha, a voz mudada e a certeza de que o moço estava morto, nem por sombra deixariam que o Coronel desconfiasse da identidade do curandeiro.
Foram dois meses de tratamento. Eram mezinhas diversas. Havia um bálsamo que era passado todo dia no corpo doente. No final, as feridas da perna secaram, a pele tornou-se lisa, sem enrugados nem pruridos. As dores do corpo desapareceram e até o embaçado da vista estava melhorando.
Moisés viu que podia suspender o tratamento a que se submetera o antes angustiado enfermo.
PARTE IX
CAPÍTULO XX
Imagem da Internet
O Coronel estava na varanda. Seus olhos estavam presos ao movimento das folhas de bananeiras impelidas pelo vento suave que soprava. Estava feliz porque sempre gostara de ver essa paisagem próxima ao terreiro. Acontece que ficara muito tempo sem ter esse prazer, mergulhado na escuridão da cegueira. Até que chegou esse homem abençoado, o Servo de Deus, que sarou minha perna e me deu um remédio milagroso que me fez voltar a enxergar. Hoje, então, tudo está mais claro e posso ver o verde tão belo das bananeiras,,,
Nesse momento, chegaram Francisca, Teodoro e Moisés e o rodearam. Preparavam-se para a grande revelação. Na sala próxima estava o jovem Teodoro, que havia chegado de Redondo; o pai o havia buscado na véspera.
Era uma manhã fresquinha, perfumada pelas flores das árvores próximas.
Os cantos dos passarinhos que pulavam nos galhos das árvores; a brisa que suavemente balançava as folhas das bananeiras; o sol alegre que se derramava sobre a terra; tudo se unia para formar um cenário propício.
– Senhor meu pai!
– Que é, menina Francisca?
O “menina Francisca” ecoou docemente no coração da filha. O pai nunca a chamar assim, dessa maneira carinhosa.
– Senhor meu pai, não sei como vai receber o que vou falar a vosmecê. O servo de Deus, que curou vosmecê, é Moisés, pai de seu neto
O curandeiro, que estava oculto atrás de Teodoro, apareceu, já sem a barba, e postou-se à frente do Coronel.
No primeiro momento, o velho assustou-se, ficou sem palavras, perplexo, como se estivesse diante de um fantasma.
Procurou Teodoro com os olhos.
– Senhor Coronel, eu não cumpri as ordens de vosmecê. Eu não tive coragem. Moisés era meu filho. Fui eu que o coloquei na porta da casa de vosmecê lá na vila quando ele nasceu. Eu não podia matar meu filho nem meu neto. Soltei Moisés no mato e mandei que fosse com a criança para bem longe. Uma aranha, na volta para casa, mordeu Sinhazinha Francisca e ela ficou à morte, na estalagem. Por uma graça de Deus apareceu na estalagem o homem que chamavam de Servo de Deus, atrás de quem andamos tanto inutilmente. E por incrível que pareça, para maior surpresa minha, era meu filho Moisés. Foi ele quem salvou Sinhazinha e agora salvou vosmecê.
Estavam todos apreensivos, aguardando a reação do Coronel.
Uma rajada de vento lançou folhas secas na varanda. Algumas caíram no colo do velho. Ele nem se mexeu para jogá-las ao chão. Estava impassível. A expressão do rosto indecifrável. Finalmente falou:
– Não sei como eu faria em outros tempos. Mas hoje digo a vosmecês: Jesus Cristo passou na minha porta e carregou com o meu orgulho. Eu agradeço vosmecê, Moisés, por ter curado minha filha e me curado. Agora eu quero ver o meu neto.
CAPÍTULO XX
Imagem da Internet
“Há tempo de chorar e há tempo de rir”
Eclesiastes, 3-6
Dois anos se passaram...
Montado no cavalo, Coronel Bento passava por entre as plantações. Ao lado, em outro cavalo, o neto Teodoro.
O velho contemplava o campo verde e fértil que se estendia a perder de vista. A Fazenda das Paineiras voltara a seus melhores tempos de fartura.
Ao longe, Moisés, Teodoro e os escravos trabalhavam na semeadura do feijão.
O fazendeiro se abriu num sorriso largo, virou-se para o lado e disse carinhoso:
– Isto tudo é nosso, meu neto!
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Passaram-se anos, décadas...
Joaquina, aquela menina escrava curiosa, já era uma velhinha, mas conservava o mesmo ar maroto.
No terreiro, rodeada por seus netos, a quem contara a história dos moradores da Fazenda das Paineiras Velhas, dizia como o velho índio da tribo dos tupis:
– MENINOS, EU VI.
NOTA: A frase final pertence ao belo poema Y Juca Pirama, de Gonçalves Dias
www.biblio.com.br/conteudo/GoncalvesDias/mjucapirama.htm
O poema é lindo! Vale a pena ler.
Agradeço a todos aqueles que leram, neste blog, o meu modesto romance.
Avelina Maria Noronha de Almeida
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